“Não, não sou uma sem-teto. Sou apenas uma sem-casa. Não é a mesma coisa, né?" Questionando a noção de lar e casa, Nomadland conta a história de uma mulher de sessenta anos que perde tudo na grande recessão. Fern, interpretada pela atriz Frances McDormand, deixa para trás sua cidade após a morte de seu marido e a falência da única indústria que sustentava a região. A protagonista decide embarcar em uma jornada sem rumo certo, vivendo em sua van como uma nômade pelas vastas paisagens do oeste americano.
Transitando entre as noções de liberdade e fuga, a narrativa do filme se baseia fortemente na beleza arrebatadora das paisagens, na ideia de mobilidade e na experiência da descoberta. Através da experiência de habitar uma van, isto é, um meio de transporte, Nomadland revisita a relação entre a vida nômade pré-sedentarismo e o primitivo instinto humano de sobrevivência. Com efeito, o estilo de vida nômade, o mais antigo meio de subsistência, era consequência direta da infertilidade dos solos, que fazia com que o trânsito constante entre regiões fosse o meio mais eficiente de exploração dos recursos. Em outras palavras, um nômade é uma pessoa sem assentamento fixo, pois a natureza o impulsiona a se manter em movimento, a vagar para sobreviver – algo que persiste nos dias de hoje, como mostra o filme.
O outro lado da moeda está, também, presente na película, que apresenta cidades criadas em torno de grandes indústrias e onde predomina o estilo de vida sedentário – um meio de existência constantemente rejeitado pela protagonista, que enxerga nele uma associação direta com o sistema de produção capitalista global. Conhecidos como company towns, estes assentamentos são basicamente vilas compostas por habitações e infraestrutura básica de propriedade de uma única companhia, que é também a principal fonte de empregos da região. Projetadas para aumentar a produdutividade das empresas, estas pequenas cidades estão no limiar entre produção e exploração, sendo frequentemente associadas a más condições de trabalho. Outrora lar de 3% da população dos Estados Unidos, estas cidades, estreitamente conectadas a uma única empresa, crescem e encolhem junto com ela, o que não ocorre sem grandes impactos financeiros e psicológicos na vida das pessoas que lá vivem. Em Nomadland, Fern deixa sua "casa" em Empire, Nevada, após o colapso econômico da companhia – e, consequentemente, da cidade – em decorrência da maior recessão da história dos Estados Unidos, que gerou o êxodo de quase 10 milhões de norte-americanos. Nesse sentido, o filme questiona esta realidade e o significado de casa para a protagonista.
Seguindo um padrão sazonal de deslocamentos, nômades em geral, e particularmente no filme, acabam se tornando parte de comunidades, pessoas que eles "encontram pela estrada". Viajando de carro, van, moto ou furgão, fazem paradas em alguns pontos fixos, áreas públicas de propriedade do governo, que servem de apoio com conveniências básicas. Com efeito, há toda uma infraestrutura que permite o estilo de vida do nômade moderno: os EUA confiou em uma vasta rede de mobilidade que ditou a marcha para oeste e o crescimento da nação nas primeiras décadas do século XX, permitindo a expansão econômica e o livre fluxo de pessoas por todo o território nacional. Além disso, após a crise econômica e o aumento exponencial no custo do aluguel, mais e mais pessoas optaram por essa mudança no estilo de vida, gerando uma onda de encontros entre nômades e a proliferação deste meio de vida.
As hipnotizantes paisagens do oeste americano colocam a personagem – e o espectador – em um estado de sublimação diante da vastidão destes lugares, estabelecendo uma clara alusão à ideia de liberdade e à filosofia de vida seguida pelas comunidades nômades, em evidente contraste com as densas e populosas cidades onde vive mais da metade da população global.
Abandonando o sistema para viver uma vida não-convencional, ou, fugindo das estruturas de exploração para sobreviver na incerteza e no desconhecido, a obra da diretora Chloé Zhao é uma jornada lenta pelas margens da sociedade, com toda a liberdade e solidão que ela traz. Levando o prêmio de Melhor Filme no Oscar de 2021, o filme – baseado no livro Nomadland: Surviving America in the Twenty-First Century, de Jessica Bruder, publicado em 2017 – se localiza em um território pouco definido entre documentário e ficção e se apresenta como uma jornada poética de contínua descoberta da personagem. Com a participação de pessoas reais, verdadeiros nômades modernos, o filme não trata apenas de pegar a estrada e estar constantemente em trânsito; lança luz sobre aqueles que escolheram um caminho alternativo e criaram um significado diferente para aquilo que podemos chamar de casa.
Todas as imagens são capturas de tela do filme, cortesia da Searchlight Pictures: Cor Cordium Productions, Hear / Say Productions, Highwayman Films, Mollye Asher, Dan Janvey.